domingo, 23 de maio de 2010

hipocrisia



Nunca fui a queridinha da Associação de Pais e Mestres, mas ia à missa aos domingos e confessava os meus pecados sentada no colo do padre. Portanto não esperem que eu assuma uma atitude hipócrita usando este espaço para condenar as safadezas alheias, como se eu fosse uma santinha. Estou dizendo isso porque uma certa poetisa recém lançada dedicou o seu livro aos "justos" e jura desprezo aos demais indivíduos da espécie humana. Se ela não fosse uma pessoa inteligente e culta, como imagino que seja, eu poderia acreditar que, coitada, não sabe que dedica o seu desprezo a todos os seus leitores que, como eu e, evidentemente, como ela também, clamam por justiça para os outros e privilégios para si e para os seus, porque as noções de justiça e de probidade que cultivamos sofre da elasticidade dos interesses próprios contrariados. Isso é humano e é natural que seja assim. Portanto, não sinto dificuldade ou remorso em classificá-la entre os hipócritas, o tipo de gente que mais me enoja. Não vou dizer quem é a moça pra não fazer propaganda gratuita. O livro tem dois bons poemas e quatro ou cinco razoáveis. O resto não vale a tinta. Mas não julguem que isso é pouca coisa: a poesia contemporânea é paupérrima. Dois bons poemas em um mesmo livro é fato notável.

Por falar em hipocrisia, recebi um e-mail de uma leitora do blog. Ela diz que lê tudo que eu escrevo, que concorda com tudo que eu digo, que gostaria de ser como eu sou, mas que não pode se expor e que por isso é acompanhante anônima do blog e não deixa comentários. Tentando se justificar, ela arrola meia dúzia de motivos estúpidos, entre os quais um marido ciumento, violento e antiquado, mas que ela diz que ama e teme perder. Defendo o direito que ela tem de ser covarde. Não tenho como saber das dificuldades que enfrenta e posso aceitar que em certas circunstâncias levar umas porradas de vez em quando pode ser menos doloroso que passar necessidade. Mas me senti mal lendo o e-mail, tanto quanto com a dedicatória da poetisa. Em circunstancia alguma eu aceitaria ser espancada. Fere a minha noção de dignidade. Em circunstancia alguma eu aceitaria que alguém bisbilhotasse minha bolsa, meus bolsos, minhas gavetas, que rastreasse no histórico do browser os sites que visitei, que abrisse as minhas cartas, que vasculhasse os meus e-mails. Isso fere a minha noção de dignidade. Porém, só me cabe cuidar da minha dignidade, não da dignidade alheia. E, como tudo o mais, a noção de dignidade de uma pessoa pode ser muito diferente da de outra. Ser puta, por exemplo, não fere a minha dignidade. Não sou juíza de ninguém e cada qual que ature o peso da sua cruz, mas, por favor, querida leitora anônima, não me venha dizer que concorda com tudo que digo e que gostaria de ser como eu sou. Talvez você se sinta melhor aceitando-se como é.



Sem pudor me exponho
para os puros e para os ímpios
pois não me inquieta
se quem quer me decifrar
tem as mãos sujas de sangue
se almeja a santidade
se mente
se rouba
se traí
se vai a missa
se reza
pouco me importa
a mim não cabe julgar.

Carla Luma


10 comentários:

  1. Estou gostando muito do blog e adorei o que vc comentou no meu. Estou rindo até agora. Rica com calos?!? Ricos não têm calos, têm podólogo!
    Bjkas e um bom dia.

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  2. Olá,
    "...clamam justiça para os outros e privilégios para si e os seus..."
    A hipocrisia faz com que poucos tenham a noção da sua "defesa" de justiça e o quanto somos parecidos com aqueles que criticamos, censuramos, condenamos... É o faça o que digo...quase sempre prevalecendo.
    Saúde e felicidade.
    João Pedro metz

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  3. As ricas cultas, Betty. As ignorantes como eu temos calos mesmo.
    Beijos meus

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  4. Prevalece sempre, João.
    Beijos, querido.

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  5. Gostei deste texto, Carla.
    Ótima semana.
    Beijos

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  6. Milagre!!!!
    Pensei que não comentasse mais no meu blog, Fredinho.
    Beijos, querido.

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  7. Belo texto, tem muito gente que faz isso, reclama, reclama e continua ali na sua zona de conforto.

    Bjinhos, amiga conterrânea

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  8. É mesmo muita coincidência nascermos na mesma cidade, Dilinha, já que Jacarezinho tem uma população de mais ou menos 40 mil habitantes, mas você deve ter saído de lá há muito tempo, já que não conheci você quando morava lá.
    Beeeiiiiiijos

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  9. já fui hipócrita. já acreditei em justiça. já trepei por cama quente e comida na mesa. já apanhei de homem. já disse, jurei amar sem ter certeza. e pior, já tive mtas certezas, ainda tenho. já escrevi poemas nada razoáveis. já escrevi coisas que não são nem belas, nem boas, nem úteis.(sem concordância-de lÍngua-de credo- de justiça) já concordei com tudo. já me perdi no meio de tanto sentido.

    hipocrisia (acabo de escrever hipocrEsia) me sobra.

    atiro pedras ainda. pensei ser diferente por largar a segurança que inventei pra mim.
    fui mais hipocrita ainda...

    inventei novas -
    encaminho mulheres em situação de violência pra serviços públicos violentos,

    ontem senti nojo de mim. por não ter coraGem de largar tudo. por ainda ter o suficiente pra ficar presa a tanta hipocrEsia.
    abs

    ps. teus textos me diluem,

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  10. Que catarse, Dani. Desabafar é bom, mas, após deixar o emocional em ebulição até a explosão, é preciso respirar fundo, secar as lágrimas, e permitir que a racionalidade faça o seu trabalho para que possamos readquirir o equilíbrio.
    O primeiro, e mais importante, passo para resolver um problema é identificá-lo. Pelo que entendi você está insatisfeita com o seu trabalho que a obriga a fazer coisas que ferem a sua consciência. Acho que quase todo mundo está em situação idêntica, mas bem poucas pessoas chegam a ponto de sentir-se enojadas. Isso depõe a seu favor, mas, paradoxalmente, faz-lhe mal, melhor seria para você que você se lixasse para os outros, que fosse egoísta, que aceitasse a hipocrisia como uma conseqüência das suas circunstâncias, mas cada pessoa com a sua natureza e a sua, acredito, é a de pessoa sensível que se dilacera em razão das contradições entre as suas necessidades e as suas convicções.
    Talvez eu não devesse ir além, não devesse aconselhar-lhe, mas, para que você não se dilua, digo-lhe que se eu estivesse no seu lugar, e chegasse à conclusão que não teria outra opção, nem disposição pra virar hippie, fugir para um templo budista, ou adotar outra solução romântica, eu acho que simplesmente aceitaria o fato de que a vida é assim mesmo e cairia na gandaia, porque, minha amiga, o segredo da felicidade é aceitarmo-nos como somos, aceitarmos os nossos defeitos, e aceitarmos o fato de que, se não temos condições de mudarmos as coisas, devemos esforçarmo-nos para adaptarmo-nos a elas, se possível sem causar prejuízos às outras pessoas.
    Beijos, querida

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