contos







strip-tease

bebo. bebo muito. no primeiro copo a consciência pesa porque me lembro do ano que penei pra perder os trinta quilos que ganhei quando estava amancebada com um corno de Curitiba que — não contente em meter no meu cu e depois me mandar chupar a pica suja de merda — resolveu bancar exclusividade. isso foi quando eu ainda morava em Jacarezinho e é história pra contar aqui em outra ocasião, mas que pode ser lida no meu livro As mãos me falam, os falos me calam, que será lançado na China nos próximos meses.

no primeiro copo eu me lembro que 300 ml de cerveja têm 126 calorias, equivalentes a quase uma hora de bicicleta. no segundo copo eu contemporizo. penso que posso ficar sem uma refeição e prometo a mim mesma que não irei além do terceiro copo. no terceiro copo eu peço o cardápio de tira-gosto. mesmo sabendo que pedirei o de sempre: lingüiça-com-batatas-fritas.

pausa pra dizer que a porra do corretor ortográfico — utilíssimo, porque sou ortograficamente lastimável — insiste em colocar trema em linguiça, que, além de trema, perdeu o sabor que tinha na infância. não. não sou saudosista. convenhamos que não se pode mais obter linguiça gostosa usando carne desses porcos criados em cativeiros mais higiênicos que salas de cirurgias. porcos e putaria, meus amores, decisivamente não combinam com limpeza.

dez. apenas dez pauzinhos de batatinhas fritas têm 274 calorias. não precisa conferir, confie em mim, eu sei de cor e salteado o valor calórico de todas as merdas de que eu gosto. é impossível, pelo menos para mim, comer menos que 30 batatinhas. não vou me dar ao trabalho de fazer contas. se você fizer não esqueça de acrescentar 190 calorias para cada 60 gramas de linguiça sem trema.

no quarto copo, meus amores, eu já não estou nem aí nem chegando pra calorias, gorduras, regimes, estética, saúde, porra nenhuma. e como não sei beber sem beliscar, peço uma generosa porção de camarão ao alho e óleo, ou um prato de torresmo pra me lembrar de certos dias que passei no Mercado Central de Belo Horizonte, a barriga encostada no balcão do boteco, entronando cerveja, torresmo, fígado com jiló... e lembrando, obviamente, de uns caras, que eu nem via a cara, fazendo terra na minha bunda. volumosa e voluptuosa bunda que ocupava quase a metade do espaço que há entre o balcão do boteco, até o balcão do boteco do outro lado do corredor. tenho certeza que o cara que projetou aqueles bares gostava de uma boa sacanagem.

no quinto copo eu tiro a blusa, pretextando calor. no sexto subo na mesa, peço pra aumentar a música e começo o strip-tease.

bebo. bebo muito.



publicado na Edição 40/Maio 2010





um fogo que arde sem se ver

o homem mais sacana que eu conheci era jardineiro.
já morreu, o coitado...
será que coitado vem de coito? sendo assim não faz sentido.
o dicionário etimológico que me custou muitos coitos, uns prazerosos, outros não — mas nenhum que eu possa incluir entre as tragédias que me fariam uma coitada —, diz que coitado "deriva do latim vulgar, coctãre, de cõctus, por coactus..."  verbete que a mim não esclarece porra alguma.
morreu na prisão.
foi morto pelos colegas de cela que, antes de chucharem-no, fizeram ele de mulherzinha porque souberam que estava pagando pena por estupro de menor.
fazia canteiros lindíssimos. 
chamava-se Severino.
era cearense, ou paraibano, pernambucano, baiano, alagoano...
de fato não sei, mas com esse nome, aquela cabeça achatada, a pele amarela acinzentada, é batata, nordestino da gema.
Severino era jardineiro e poeta.
dei pra ele em uma clareira gramada que ele deixou no centro de um enorme canteiro de hibisco. me penetrou delicadamente sussurrando sonetos de Camões ao meu ouvido, virgem de poesia e fantasias. eu acho que tinha doze ou treze anos. foi a primeira vez que ouvi que o "amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente, é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer".
doer, doeu, porque ele tinha um pau enorme, mas o meu contentamento superava qualquer dor.
fizemo-nos noivos.
ele me disse que casaríamos quando eu fosse de maior e não precisasse de autorização paterna. disse que ficaria rico e me levaria para conhecer os mais belos jardins do mundo: os jardins de tulipas da Holanda, os jardins do Palácio de Versailles... só faltou incluir os jardins suspensos da Babilônia. mas, até lá, ele pediu que eu não contasse a ninguém, nem mesmo à minha melhor amiga, que, depois eu descobri, ele também comia.
mas eu não estou me queixando.
Severino era um poeta. talvez jamais tenha escrito algo. analfabeto talvez não fosse, apesar de que há talvez milhares de nordestinos analfabetos que recitam poemas e até os compõem. mas só posso classificar entre os poetas um homem que enquanto enfia diz as coisas mais lindas que se pode ouvir.
sempre que posso eu vou ao cemitério e levo um hibisco para enfeitar a sepultura do meu primeiro noivo.






publicado na Edição 40/Maio 2010







a água suja suja suja tudo

Vivessem vocês como vivo, de rua em rua, porta em porta, beco em beco, aqui fazendo unha de madame, ali vendendo um batom, acolá um boquete, teriam ódio de chuva. Eu tenho. É atraso de vida. Queda certa e imediata no faturamento. Ou vocês pensam que comprei apê e new beatle com literatura? A porra agora se agravou. Culpa, dizem, do tal de aquecimento global. A chuva é diária o dia inteiro e eu tenho new beatle, não tenho barco. O celular só toca pra desmarcar. Acho até que não dá mais pra morar aqui em Sampa. Voltar pra Jacarezinho nem pensar. De lá só o meu travesseirinho, que mamãe recheou com penas de ganso retiradas de um velho cobertor. Taí duas palavras que me causam arrepio: ganso e cobertor. Chuva? Chuva não. Odeio. Aliás, não entendo porque, com tanto progresso, tanto desenvolvimento, ainda não cuidaram de cobrir as ruas das cidades. Cobrir e climatizar, obviamente. Imaginem transformar São Paulo em um gigantesco shopping center?  Ficaria chiquíssimo. Pensei em me mudar pra Salvador, mas me disseram que o que eu faço por grana a concorrência faz lá por prazer. Odeio chuva. Talvez vá para o Rio. Apesar que lá também chove, penso que será mais fácil conquistar os votos de que preciso pra entrar na Academia Brasileira de Letras. Posso descolar um apê no Leblon próximo ao de João Ubaldo Ribeiro, que é baiano de Itaparica e com certeza odeia chuva tanto quanto eu.






publicado na Edição 39/Março 2010


e na quadragésima quarta leva do
Diversos Afins




Federico


Atire a primeira pedra à puta aquela que nunca sucumbiu à ilusão da segurança representada por um - digamos para quiçá instaurar nesta simplória narrativa um clima de fábula - príncipe encantado. Que é um ente mítico que reúne miraculosamente as figuras do pai, do amante e do filho. Ou seja: do provedor, do estuprador e do bibelô.
Estes surtos de loucura felizmente nunca foram muito duradouros e, tanto a intensidade quanto a freqüência foram diminuindo após o fim da adolescência. Entretanto, conheci Federico quando eu já me considerava livre deste perigo. O cara entrou na minha vida como o furacão Katrina em Nova Orleans: avassaladoramente.
É mentira. Não foi boa a comparação, mas gostei da imagem e não vou retirar. Na realidade ele chegou de mansinho e me conquistou trazendo-me flores, presentes, chocolates - sou doidinha por chocolate, principalmente os absurdamente amargos - como se pudesse ler pensamentos, suprindo, desta forma, a figura do pai ideal. Mais tarde, na cama, na hora da onça beber água, era pródigo nas artes sexuais. Chupava, metia, tirava, me virava do avesso, chupava de novo, metia, gozávamos, cansávamos, começávamos outra vez, até a completa exaustão e, depois, saciados, tornava-se uma criança dócil solicitando afagos para dormir. Era o homem perfeito, pensei. Deste não largo, brigo por ele até a morte, pensava. Apaixonada. Sucumbida.
Imagino que vocês estão pensando que agora é a hora do mas, e que direi que com o tempo ele foi deixando de me trazer presentes, que se tornou frio, ausente, grosso, ou que eu descobri que era um gigolô e que eu era uma espécie de investimento. Não. Nada disso. Acontece é que cansei. Acontece é que eu não presto. Acontece é que eu jamais conseguiria meter um par de chifres em Federico: um cara tão perfeito, um gentleman, e, ao mesmo tempo, eu não consigo me satisfazer comendo do mesmo todos os dias, pode ser lagosta, camarão, feijoada, o manjar que se serve aos deuses no monte Olimpo... Eu não consigo. Estava ficando triste, melancólica, beirando a depressão. Mandei Federico pastar e, desde então, considero-me definitivamente curada.


Carla Luma