sexta-feira, 9 de abril de 2010

covardia

Estou revoltadíssima, meus amores. Enfiaram sob a minha porta um bilhete anônimo no qual sou tratada por vagabunda e acusada de ser a vergonha do prédio e um perigo para moral e os bons costumes.

A revolta nem é tanto por ser chamada de vagabunda, é mais por se tratar de um bilhete anônimo, muito mal escrito por sinal, cheio de erros de ortografia e de concordância, tirando-me a oportunidade de esclarecer que puta não é vagabunda, que puta trabalha muito mais do que certas madames que não fazem porra nenhuma, exceto exatamente o mesmo que eu faço, com a diferença de fazer mecanicamente, de fazer eventualmente, de fazer sem arte, de fazer como se não estivesse fazendo para justificar a vida boa que leva às custas dos seus homens. Algumas nunca varreram uma casa, nunca lavaram pratos ou roupa, nunca suaram passando a ferro, nem na beira do fogão. E não fazem nada com a justificativa de que não querem quebrar a unha, não querem fazer calos nas mãos, não querem derreter a maquiagem... porque? Porque precisam estar sempre fresquinhas, bonitinhas, tas quais bonequinhas à disposição dos seus provedores. São o quê? São putas. E são vagabundas, não eu.

Obvio que isso é coisa de alguma vizinha, ou de mais de uma. Não quero acusar ninguém, mas suspeito de... Não, melhor não acusar porque não tenho certeza.

Mas eu sei exatamente o que pretendem. Pretendem me assustar. Pretendem me colocar na defensiva. Pretendem, tenho certeza, que eu me mude. Sabem por quê? Porque têm medo de mim. Porque vêm os olhos gulosos que os seus homens colam na minha bunda quando cruzam por mim nos corredores, no playground, nos elevadores. Têm medo, é isso. Se não tivessem não se esconderiam atrás do anonimato covarde. Pois bem. Já sei o que vou fazer: se o meu advogado não se opuser, eu vou fazer cópias xerox do bilhete, anexar esta minha resposta e enviar para todos os apartamentos.

Felizmente hoje é sexta-feira e tenho convite para passar o fim de semana em Campos do Jordão para onde sigo esta noite.

Beeeeeeeiiiiiiiiijoooooooooooos

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Homem Vitruviano




















Encontrei-me com uma amiga de infância que não via fazia milênios. Enquanto ela me falava apaixonadamente da sua profissão eu me dei conta da necessidade de esclarecer alguns aspectos do meu ofício, caso eu não pretenda que os meus milhares de leitores e leitoras fiquem como fiquei na conversa com Amália Malaquias: nas nuvens.

Certamente muita gente sabe que os classificados de quase todos os jornais aceitam anúncios de, digamos eufemisticamente, massagistas e acompanhantes, mas é uma fria, meus amores. Quem quiser minimizar os riscos de trilhar nesta maravilhosa senda do comércio sexual deve preferir o marketing direto com a utilização de porteiros e recepcionistas de hotéis como intermediários. A taxa de praxe é de 10%, mas, se você der um pouco mais, se for do tipo que pergunta pela família do cara, ou até se se dá de graça a ele em datas comemorativas, terá, em reciprocidade, a preferência para atender aos melhores clientes: os mais generosos e, se possível, mas não obrigatório, os mais simpáticos. Exceto por uns caras aqui da cidade que já me conhecem, e têm o número do meu celular, atendo preferencialmente executivos, em viagens de negócios, hospedados em hotéis de 4 e 5 estrelas. É o meu nicho de mercado. Meu cachê básico é de 500 reais, mas, quando a procura está baixa, pra não ficar sem serviço, faço por 300 paus. Em compensação, quando a procura cresce, o que ocorre quando há grandes eventos na cidade, Salão do Automóvel, por exemplo, meu cachê pode ir até 2 mil.

Mas, é bom que fique claro que minimizar riscos não significa absolutamente que se trata de uma atividade isenta de perigos. Já passei por situações que me levaram à beira do pânico. Uma ocasião fui investigada e passei por horas de interrogatório em uma delegacia de polícia imunda, uma pocilga fedorenta, tudo porque um porteiro de hotel achacava os executivos que requisitavam serviços sexuais. O mau-caráter tinha acesso às fichas dos hospedes e, não sei como, fazia fotos comprometedoras. Um dos chantageados tomou a atitude certa: foi à polícia. Felizmente logo se esclareceu, o próprio porteiro confessou, que nenhuma garota estava envolvida no esquema.

Pior que isso foi o medo que passei quando fui atender um homem imenso. Tinha quase dois metros, ou um pouco mais. Pintava cabelo, bigode e sobrancelha de um preto retinto. Apesar disso, ou talvez por isso, dava pra se perceber que tinha por volta dos setenta anos. Não era um velho alquebrado. Era forte, enérgico, com a voz grossa e autoritária. Uma dessas pessoas que você logo percebe que está acostumado a mandar e a ser obedecido sem contestações. Até aí tudo bem, eu já havia atendido muitos outros homens com aquelas características que, por sinal, parecem constituir um dos fatores que os alçam ao sucesso no competitivo mundo dos grandes negócios e das grandes negociatas: muitos políticos têm também estes atributos.

O meu coração começou a disparar foi quando o cara disse que me algemaria na cama: pés e braços, e eu me imaginei o Homem Vitruviano de Da Vince. Protestei. Ele me mandou calar a boca e que deitasse, nua, pernas e braços abertos. Falou de um jeito que, até hoje não entendo porque, obedeci. Algemou-me. Pôs um lenço na minha boca e lacrou-a com fita crepe. Não precisava: bastava o coração na boca para me manter calada. Ficou alguns minutos, que me pareceram uma eternidade, apenas me olhando e dizendo: “você é uma obra-prima”. Depois se sentou ao meu lado e começou a me acariciar lentamente com a ponta dos dedos. Acalmei-me. Depois começou a me lamber. Eu já estava tranqüila e até gostando, convencida de que ele não cometeria violência. Foi ao banheiro e quando voltou trazia uma navalha na mão. O coração voltou a disparar, comecei a suar apresar do ar-condicionado fortíssimo do quarto. Inutilmente tentava gritar e me mexer. As lágrimas inundaram os meus olhos. Imagino que a minha cara era de puro pânico e que aquilo o excitava. O filho da puta me depilou os pentelhos e quando imaginei que me estupraria ele masturbou-se e me untou com aquela porra fedorenta. Depois sorriu. Disse-me que fui uma ótima menina, que me pagaria o cachê triplicado. Que me acalmasse. Que não gritasse. E sorriu novamente: um sorriso de menino grande que está satisfeito com um brinquedo novo. Arrancou a fita crepe com um movimento rapidíssimo e pôs a outra mão sobre a minha boca. Doeu pra caralho. Percebeu que eu não gritaria. Tirou o lenço que já quase me sufocava. Tirou as algemas. Pagou-me regiamente. O pior havia passado. Consegui me acalmar. Vesti-me, e, quando ia saindo, uma força misteriosa me fez dar meia volta. Tirei da bolsa um cartão e disse a ele que me ligasse quando viesse outra vez a São Paulo. Ele disse que talvez ligasse, mas só após o tempo necessário para que me crescessem novos pentelhos.


Carla Luma

segunda-feira, 5 de abril de 2010

federico




















A
tire a primeira pedra à puta aquela que nunca sucumbiu à ilusão da segurança representada por um - digamos para quiçá instaurar nesta simplória narrativa um clima de fábula - príncipe encantado. Que é um ente mítico que reúne miraculosamente as figuras do pai, do amante e do filho. Ou seja: do provedor, do estuprador e do bibelô.


Estes surtos de loucura felizmente nunca foram muito duradouros e, tanto a intensidade quanto a frequência foram diminuindo após o fim da adolescência. Entretanto, conheci Federico quando eu já me considerava livre deste perigo. O cara entrou na minha vida como o furacão Katrina em Nova Orleans: avassaladoramente.


É mentira. Não foi boa a comparação, mas gostei da imagem e não vou retirar. Na realidade ele chegou de mansinho e me conquistou trazendo-me flores, presentes, chocolates - sou doidinha por chocolate, principalmente os absurdamente amargos - como se pudesse ler pensamentos, suprindo, desta forma, a figura do pai ideal. Mais tarde, na cama, na hora da onça beber água, era pródigo nas artes sexuais. Chupava, metia, tirava, me virava do avesso, chupava de novo, metia, gozávamos, cansávamos, começávamos outra vez, até a completa exaustão e, depois, saciados, tornava-se uma criança dócil solicitando afagos para dormir. Era o homem perfeito, pensei. Deste não largo, brigo por ele até a morte, pensava. Apaixonada. Sucumbida.


Imagino que vocês estão pensando que agora é a hora do mas, e que direi que com o tempo ele foi deixando de me trazer presentes, que se tornou frio, ausente, grosso, ou que eu descobri que era um gigolô e que eu era uma espécie de investimento. Não. Nada disso. Acontece é que cansei. Acontece é que eu não presto. Acontece é que eu jamais conseguiria meter um par de chifres em Federico: um cara tão perfeito, um gentleman, e, ao mesmo tempo, eu não consigo me satisfazer comendo do mesmo todos os dias, pode ser lagosta, camarão, feijoada, o manjar que se serve aos deuses no monte Olimpo... Eu não consigo. Estava ficando triste, melancólica, beirando a depressão. Mandei Federico pastar e, desde então, considero-me definitivamente curada.



Carla Luma

sexta-feira, 2 de abril de 2010

prólogo





Não sou de deixar as minhas coisas ao acaso, como se a mão da providência pudesse vir com um inusitado tesão apenas para pagar as minhas contas e não, como sói de ser, para apalpar-me as carnes, arrancar a minha roupa e me enfiar a pica em todos os orifícios prováveis e, se eu der mole, nos improváveis também.

Generosidade gratuita nem mesmo na infância. Lembro-me perfeitamente que o meu padrinho ficava de pau duro quando me colocava no colo e que me beijava na boca quando ficávamos sozinhos, mas nunca tentou me comer, é bom que eu deixe claro. Eu até que gostava de sentir aquele pau latejando na minha bunda. Não gostava era do bafo de cigarro, mas ele me trazia chicletes e sempre deixava uma grana pra eu ir ao cinema e tomar sorvete.

Com certeza eu estaria dizendo besteira se afirmasse que naquela idade eu considerava aquilo uma lisonja. Na época eu não cogitava o imenso poder que uma mulher pode exercer sobre os homens. Este conhecimento eu só adquiri na adolescência e a ele devo todas as minhas conquistas. Quando vou a Jacarezinho visito o meu padrinho. Eu gosto muito dele. O coitado está bem velhinho e gagá. Quando ficamos sós eu dou um jeito de acariciar-lhe a pica, mas a ereção nunca se completa. Até boquete eu fiz uma vez. O fracasso foi tamanho que o velho quase mija na minha boca, mas os olhinhos safados brilhavam de satisfação.

Mas eu dizia que não sou de deixar as minhas coisas ao acaso. Foi por isso que escrevi as minhas memórias organizando os meus diários em um livro cujo título é "As mãos me falam, os falos me calam", um grande sucesso editorial no Brasil e nos países lusófonos, que em breve será lançado no mercado chinês com uma tiragem de fazer inveja a Paulo Coelho.

Eu temia que os meus diários caíssem, se eu morresse, por exemplo, ou por outro motivo qualquer, em mãos de pessoas que não conseguem ver no âmago das coisas e que dariam à minha vida uma conotação de superficialidade que eu não admito. Não sou apenas uma mulher gostosa e bonita: tenho conteúdo.

Um advogado que me comia, quando a esposa viajava pra Curitiba, foi que me aconselhou a registrar os meus diários na Fundação Biblioteca Nacional para proteção dos meus direitos autorais. Foi a minha primeira providência. Relutei muito mas não resisto: depois se descobriu que a mulher tinha um caso na capital com um escritor famoso, cujo nome eu não direi porque não posso provar.

De uma editora à qual enviei um projeto do livro e os primeiros capítulos recebi uma carta que dizia, através de mal disfarçados sofismas, que não publicariam as memórias de uma puta, nem mesmo se eu pudesse cobrir os custos de produção e distribuição. Os idiotas não conseguiram enxergar que ao me expor, ao expor as minhas intimidades, os meus relacionamentos precoces, o que de fato se revela é a hipocrisia estarrecedora da nossa melhor sociedade. A hipocrisia da elite na qual nasci e fui criada.

Não me tornei puta por necessidade, foi uma opção por uma profissão honesta e que pode ser muito bem remunerada, desde que a profissional tenha os atributos físicos necessários, um pouco de talento para a interpretação, que saiba se valorizar e, sobretudo, que goste de foder.

Eu adoro.

Carla Luma

ilustração: Sergey Ignatenko