poemas





arquivo morto

"organizei a memória em alfabetos"
como Ana Cristina César me ensinou:

na letra A arquivei os afetos
os desafetos na letra D
mas não consigo me lembrar
em que letra arquivei você

baguncei essa porra toda
só porque queria me lembrar do seu nome
como se um homem valesse tamanho trabalho

ah! agora me lembrei
você está em C de Caralho.





publicado na Edição 40/Maio de 2010


geografia

meus pés se acostumaram
ao itinerário das chuvas
por canais extravagantes
levando-me para distante
para muito além da curva
onde dois rios se separam
no vale de chuvas eternas
onde dois rios se separam
separam-se minhas pernas
me transformo em estuário
meu corpo crespa torrente
cemitério de corsários
volatilizo-me e subo adiante
precipito-me nexo contrário




publicado na Edição 39/Março de 2010




fiapinho

eu tinha ainda
um tiquinho de nada
um fiapo fininho
um fiapinho assim
de esperança
nos seres humanos

[mostrou a pontinha
do dedo mínimo]

tinha
eu tinha
até aquele dia
que não te conto
porque isso aqui não é conto
é poesia

[deu um sorriso
mudou de assunto]


sombras

afasta-me, poeta, das sombras deste sonho
arranca os meus pés fincados neste lodo
põe no meu cabelo as tuas asas encantadas
estende-me os teu braços
ensina-me um pouco de ilusão

tudo que sou
tudo que tenho sido
é este sonho crônico
é esta incurável moléstia
é esta tatuagem
que me queima a testa

apressa-te, poeta, preciso da tua ajuda
preciso que venhas com a urgência dos ávidos
preciso que venhas com a lucidez dos loucos
preciso que venhas com a lava de mil vulcões
preciso que venhas
para que eu arda nas tuas mãos

apressa-te, poeta,
que o meu tempo se esgota
que a vida sem ti
que a minha vida
é esta infinda
escuridão


alvorada 

sangro desde os onze anos
e me lembro ainda fascinada
de quando me vi sangrando
de quando me senti menstruada

tudo ficou diferente desde então
pus no lixo os sinais da infância
e me deixei seduzir pela ilusão
d’uma adolescência de abundancia

poucos dias foram porém suficientes
para que a realidade se impusesse nua e crua
e eu fui ganhar a abundância nas esquinas

mas soube manter o sorriso casto de menina
e sob a opulência de um corpo que crescia
crescia a ambição que me inflama e alforria



epifania

se deus existe - ele disse  -
e inventou tudo que existe
-continuou a ladainha  -
deus é deus e deus
é o diabo também
ou o diabo é cria d'ele
e a sacanagem é divina

me joguei sobre o blasfemo
que tava nu e de pau duro
calei-o com um beijo
e o que rolou em seguida
a epistemologia não explica
os hedonistas recomendam
mas só os puros executam.


olhar forasteiro

eu espero
um homem que me pague as contas
um estranho
um outro olhar forasteiro
que me faça as pétalas em pedaços
mas que venha com dinheiro
não com lábia ou com poesia
que não me visto com fantasia
nem uso pérolas de vidro
eu estou farta de romantismo
de lero-lero no pé do ouvido
de homem que não pode pagar
o justo preço de uma mulher
e que amanhece ao meu lado
com bafo de onça e chulé.


máscara

minha alma sente frio
meu corpo não sente nada
fui moldada em aço e gelo
numa noite de trovoada

minha língua não se contem
minha boca está pintada
mas a alma só se esconde
sob a máscara encarnada



biografia - adolescência 

eu era uma lolita
laço de fita no cabelo
pintava os pentelhos
com azul de metileno
e os lábios da boceta
com mertiolate vermelho
os meu coleguinhas
achavam uma beleza
e inventaram esta canção:

Carla, Carla, Carlinha,
deixe de besteira
não tenha medo, querida
isso é muito natural
meninas nascem rasgadas
pros meninos meterem o pau

Carla, Carla, Carlinha,
não se faça de difícil
é para isso que serve
este seu viscoso orifício

os dias foram passando
a brincadeira tornou-se um vício
do vício fiz meu ofício
do meu ofício literatura
porque puta também envelhece
e a Carlinha aqui não merece
que a vida se torne dura 

depois de passar pela tortura
de engolir gala
e de aturar peido e gordura








Carla Luma