sábado, 12 de junho de 2010

anticlímax

Coçou a cabeça e murmurou alguma coisa em uma língua secreta. Uma oração, talvez. Uma oração tão antiga quanto as cerimônias pagãs que remontam à pré-história das religiões. É a sua defesa contra o intruso, o desconhecido que pode invadir impetuosamente a nossa indiferença oferecendo a fantasia dos instintos liberados pela poesia, pela arte, estas atividades eróticas que substituem o amor convencional, o cotidiano ritual dos encontros e desencontros cuja função é nos manter ajuizadamente à margem de qualquer tentativa de arder.

Ajoelhou-se, me olhou como se eu fosse uma desconhecida e suplicou que nos tornássemos sensatos novamente.

Não faz mal, não tenha medo, uma das nossas molas se quebrou, mas não é uma desgraça, para tudo dá-se um jeito. É impossível irmos além. Já fomos longe demais. É suficiente permanecer no desejo de exceder sem, porém, ir até o fim, sem executar o passo final, fatal

Eu esperava algo assim, mas fiquei arrasada. Eu estava pronta para a aniquilação. Já não me satisfaz a ilusão da morte como se fôssemos personagens de um drama, de um filme, de algo que se sente intensamente, mas do qual escapamos aliviados quando fecha a cortina, quando a luz se apaga, quando o livro alcança o ponto final.

Talvez a morte seja apenas um mito, uma maneira natural e elegante do corpo enganar o tempo que o consome assumindo ou se convertendo em outra substância. O desconhecido me fascina.

Eu não chorei. Sorri cinicamente, como se tranqüilizada pelo anticlímax que se coaduna perfeitamente com a índole deste adorável covarde que, contudo, neste dia dos namorados, me trouxe flores, chocolates, uma garrafa de vinho e um livro com a Obra Poética Completa de Federico Garcia Lorca.

Carla Luma

14 comentários:

  1. .."porém, ir até o fim, sem executar o passo final, fatal


    adorei.

    eu estou procurando o livro que vc indiretamente me indicou. difícil encontrar por estas bandas

    beijos
    dani

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  2. Você continua me surpreendendo, Carla. O texto é ótimo, apesar de diferente dos seus outros textos, tanto no estilo quanto no "anima" da personagem. O resultado é que funcionou para mim com um autêntico anticlímax do texto que eu imaginava encontrar, soando-me, assim, como um recurso metalinguístico.
    Beijos

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  3. Dani,

    A edição que tenho é da ARX cujo site é www.edarx.com.br

    Beijos,
    Carla

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  4. Eu é que me surpreendo por surpreendê-lo, Fredinho.
    Beeeeeeeeeeeiiiiiiiijos

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  5. E eu que não ganhei nem um beijinho nesse dia.

    Pior do que o anticlímax é o posclimax.

    Bjinhos Carlinha adorada!

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  6. Tá carente é, Dilinha?
    Se é por falta de beijinho, não sei se serve, mas mando um meu.

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  7. Décimo Sexto Cálice


    Tenho também seis rosas num quadro
    Pintado pla mão divina ao alto erguida
    De Arina revista no alfabeto soletrado
    Da vida, como menina tão-só esculpida
    No marfim dos teus gesto de lírio fugaz
    Que por sorrir me apagas maior martírio
    Me inspiras, absolves e anulas o delírio
    Murmurando ordenada e tranquila paz.

    Cada tem dez folhas verdes serrilhadas
    Escondendo espinhos, afiado esmeril
    E outras tantas emotivas pinceladas
    Nas pétalas raiadas de luz primaveril
    Convertida toda essa em tons estivais
    Amadurecendo a promessa esperança
    Nos chilreios e corridas de criança
    Plos recreios de travessa ou colegiais.


    Suposto é terem ainda uma fita de seda
    A segurá-las e até aquela cesta de verga
    Dando ao conjunto equilibrada e leda
    Ordem, que ao ampará-las, também as erga
    Como grito de cor no silêncio dos dias
    Que assim nos conceda imenso regozijo
    Combatendo o stress, ajeitando o juízo
    No consenso das devolvidas alegrias.


    Uma fita lilás, larga pétala de violeta
    Entrançando o que demais és capaz
    Com aquilo que somente eu te prometa
    Na leitura irrequieta como pertinaz
    Dos sinais que as estrelas vão ditando
    Se audaz cometa cruza nosso momento
    Propondo por condição o consentimento
    De apanhá-los à mão, ardendo – e calando!

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  8. Um belo duo: Garcia Lorca e um bom vinho para celebrar o anti-clímaz da morte aparente.
    Jorge Manuel Brasil Mesquita
    Lisboa, 03/07/2010
    etpluribusepitaphius.blogspot.com

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  9. Oi, Carla. Vi que vc tem acompanhado o jeito como me expresso e vim retribuir o carinho e a visita. E eis que, ao chegar aqui, me deparo com quem leva sua arte à China. Puxa! Fiquei lisonjeada! Já estou lhe seguindo para acompanhar as novidades e confirmar o sucesso que certamente alcançará.

    Bjs

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  10. Um arremate e tanto para a ocasião, querida!

    Beijos!

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  11. Olá, meus amores.

    Peço-lhes desculpas pela longa ausência, especialmente a J.Maria, Jorge Manuel, Lu Dantas e Fabrício, que deixaram comentário.

    Eu estava na África do Sul acompanhando a copa, ou, melhor dizendo, como acompanhante de um industrial paulistano que me pagou todas as despesas, além diárias generosas. Gente finíssima que, pra falar a verdade, só me comeu mesmo no dia que o Brasil perdeu pra Holanda. Comeu-me com uma fúria de quem parecia querer fazer em mim os gols que os nossos meninos não fizeram nos holandeses.

    Ainda estou fora do fuso e meio confusa com as idéias, quando a cabeça se aprumar pretendo escrever sobre esta minha experiência, mas talvez eu antes me decida por uma semana de retiro espiritual, estou precisada.

    Beeeeiiiiiiijos

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  12. Depois de ler seu conto, fiquei muito envaidecida de tê-la em meu blog. Teu texto é muito envolvente, uma leitura deliciosa e imprevisível com arremate brilhante. E, claro, muito bem escrito.
    Acho que vc tem grandes chances de se tornal imortal ao lado de seus ídolos. Afinal a morte talvez seja mesmo só um mito.
    E na África do Sul? Deve ter sido uma aventura e tanto. Escreva sobre. Será imperdível, certamente.
    Uma semana perfeita pra vc.
    Beijos.

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  13. Após outra longa ausência, só me resta pedir desculpas, sobretudo a você, Lua Nova, cujo comentário somente agora posso ler, e que muito me envaidece.
    Beijos, querida

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